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UM ARTISTA DA BIODIVERSIDADE

Trabalhando diariamente a 800 metros acima do mar, vislumbra-se com a natureza e a vida no seu sentido mais profundo. Materiais, superfícies, texturas, e acabamentos. Captar o sentimento, a euforia, os sentidos. Suas obras revelam formas, rostos e expressões do cotidiano, da genuinidade do dia a dia do Brasil e do mundo estampados em cada milímetro. Predileção? Só pela madeira e suas espécies, que servem como matéria-prima principal para suas obras e também para suas ações sociais junto às comunidades carentes. E é assim que nesta entrevista  relatamos vida e obras  deste autodidata, brasileiro de 55 anos que ama sua família e o luxo vindo da simplicidade: Glenn Hamilton.

 

Revista USE: Nossos sentidos muitas vezes nos apontam o caminho. Um certo dia você desceu do ônibus e decidiu mudar a sua história para sempre. Conte-nos como foi o seu primeiro dia no mundo das artes contemporâneas de forma consciente?

Glenn: Estudei química no colégio e acreditava que esse era meu caminho. Prestei vestibular e fui aprovado na Faculdade Oswaldo Cruz, uma das mais renomadas na área de química no país. Nesta época, trabalhava como auxiliar de escritório na Escola Panamericana de Arte e Design, e a fotografia me atraia muito. No dia em que estava indo de ônibus para fazer a matrícula na faculdade, num impulso, desci do ônibus e com o dinheiro da matrícula comprei uma máquina fotográfica de segunda mão. E foi através da fotografia que eu entrei para este universo.

 

USE: Suas peças são originalmente criadas a partir da beleza do cotidiano. Como tudo começou?

Glenn: Desde a infância, sempre gostei de desenhar. No período em que trabalhei como fotógrafo em uma revista técnica agropecuária,  fui convidado para ser padrinho de casamento de um amigo. Naquela época, a grana era muito curta, então resolvi pintar um quadro (imaginei que ele ia acabar gostando mesmo que não ficasse bom …risos). Com o dinheiro que eu tinha consegui comprar uma tela (não muito grande), algumas tintas e dois pinceis. Pintei uma cabeça de cavalo e presenteei o casal. As pessoas viram o quadro e começaram a pedir, e comecei vendê-los. Hoje eu sei. Quem ganhou o presente, fui eu.

 

USE: Conte-nos sobre sua experiência profissional. Quando foi o momento ideal para abrir seu ateliê?

Glenn: Durante alguns anos tive que me desdobrar em duas ou três atividades para viver e foi assim até o ano de 2004, quando já casado e com filhos, resolvi me dedicar exclusivamente à arte. Neste processo, fiz uma descoberta incrível: O mundo te reconhece como artista, quando você só se vê como artista. Também aprendi que o artista é como qualquer outro profissional. Tem de trabalhar sério, com muita disciplina e pesquisa. Também é importante se preocupar com a divulgação e com a comercialização do seu trabalho. É um erro o artista sentir-se diferente e imaginar que não precisa ter essa postura.

 

 

USE: Há uma relação de amor com a madeira. Especialmente aqueles pedacinhos que ninguém mais dá valor. Conte-nos como isso é pluralizado em suas obras.

Glenn: Morei algum tempo em um sítio e via muito desperdício de madeira. Especialmente quando trabalhamos materiais naturais, sabemos que devemos respeitá-los: Suas características relativas a espécie, grau de secagem, cores, beleza de seus veios e nós. Também sempre me interessei pelo trabalho com crianças – a formação é fundamental. Sinto muita gratidão por trabalhar com o que amo e ter qualidade de vida. Por todos estes aprendizados e amores, sinto necessidade de retribuir isso de forma social e ambientalmente correta. E foi no ano de 2014, que somei tudo e desenvolvi o “Projeto Criança”. Cada ano trabalho um tema, organizo uma exposição com trabalhos feitos com aparas descartadas de madeira e recebo os alunos das escolas de regiões de maior vulnerabilidade socioeconômicas para conversar sobre arte, ecologia e valores. Este projeto é totalmente inclusivo, com interpretes de libras, impressão de textos em braile e são realizados em locais totalmente acessíveis aos que possuem dificuldade ou ausência locomotora. Também recebo alunos de diversas unidades da Apae e grupos da terceira idade.

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Fotos 1 e 2

Título:Amanhã 1 e Amanhã 2 – 2015

Painéis de aparas descartadas de madeiras

Acabamento em Osmocolor incolor UV Glass

Foto Mauro Fy/Photolab

 

 

USE: Que outros tipos de materiais você utiliza além da madeira? Como você as identifica?

Glenn: Como me interesso muito pela natureza, um tempo atrás decidi criar uma série representando os ventos e a sua leveza. Achei interessante fazer isso com um material totalmente oposto, o aço. Na minha série “Sinuosas”, as esculturas parecem ser tiras de tecidos muito leves, que estão em suspensão, ao sabor dos ventos.

 

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Trabalhos da série Sinuosas – 2015 e 2016

Lackstone e Lacksteel sobre aço

Fotos: Mauro Fy/Photolab

 

USE: Suas obras são carregadas de cenas do cotidiano, em formas geométricas e inúmeras texturas. Como acontecem seus insights criativos?

Glenn: O artista se alimenta pelo coração e olhos. Tudo que sentimos e vemos formam nosso estoque de matéria-prima. Ao contrário do que muitos pensam, criatividade é algo que se desenvolve com técnicas e trabalho. Precisamos primeiro alimentar nosso subconsciente com informações, e para isso temos que ter interesse genuíno pelas pessoas, fatos e coisas. O olhar e a percepção precisam estar plenos no exercício de suas funções. A partir daí, sua cabeça organiza tudo e te devolve ideias novas, criadas na maioria das vezes com informações antigas.

 

 

“Experimentar a vida

em uma comunidade

sem medo é muito marcante”.

 

USE: Qual a experiência mais rica da sua trajetória como artista plástico?

Glenn: Tenho trabalhos em Portugal, França, Itália, Estados Unidos, México e no Senegal. Em 2009, recebi o convite do Governo senegalês para participar de um concurso entre artistas para criação de dois monumentos para o Festival de Artes Negras, que ocorre em Dakar, a cada dois anos. Fui escolhido e tive o prazer de trabalhar lá durante trinta dias. Os senegaleses são pessoas maravilhosas, que apesar de muita dificuldade ou até por causa dela, nos ensinam que a felicidade vem do que somos e não do que possuímos. Eles são honestíssimos, e experimentar a vida em uma comunidade sem medo é muito marcante. Possuem uma riqueza cultural que nos identificamos a cada passo, visto a diáspora negra no Brasil. Realmente foi uma experiência incomparável.

 

“Sempre sorrio quando o vejo,

e ele faz isso com as outras pessoas também”.

 

USE: Há alguma peça que você tenha um amor especial? Você guarda peças de sua autoria em sua casa?

Glenn: Todos os trabalhos são especiais. Como dizia Aldemir Martins, “de onde veio esse, tem muito mais”. Não interpretem isso como pretensão. Para um médico, todos os pacientes são importantes. Mas existem sim, trabalhos que parecem falar mais que os outros. Tenho carinho por dois em especial. Um fiz, depois que retornei da África, inspirado em um menino que conheci chamado Frejan e o outro foi um painel de uma das edições do Projeto Criança que retrata uma menina sorrindo. Sempre sorrio quando o vejo, e ele faz isso com as outras pessoas também. Tenho poucos trabalhos meus em casa. Prefiro os trabalhos dos muitos amigos artistas que conheço.

 

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Frejan – 2009

Aparas descartadas de madeiras

Acabamento em Osmocolor incolor UV Glass

 

USE: Conte-nos sobre o seu dia a dia, esposa e filhos. Como eles somam a sua criatividade?

Glenn: A família é primordial. Além dos arquétipos “base de tudo” ou “porto seguro”, vejo na família uma fonte de renovação e crescimento individual muito importante. Minha esposa e eu temos profissões muito diferentes (ela é veterinária) e aprendemos muito um com o outro. Casei um pouco tarde então tenho mulher e filhos jovens e isso requer muitas atualizações no meu “software” (risos). Os três me fazem muito melhor e muito maior do que se eu estivesse sozinho. Moramos em Atibaia, cidade composta por uma colônia japonesa muito grande. Meu filho de 11 anos luta judô e minha filha de 17 anos toca Taikô (tambores japoneses). Essas atividades me ajudam muito como pai e também na formação deles.

 

USE: Para você, qual a importância do contato com a arte desde a infância?

Glenn: As pessoas e a sociedade se integralizam no reconhecimento do seu DNA sócio cultural e isso é transmitido de forma mais eficaz, pela experiência. Portanto, uma sociedade que não favorece o convívio pleno e saudável das crianças com a arte, a cultura, o esporte e com os valores ético e morais, não está fazendo a sua parte.

 

USE:  O que é luxo para você?

Glenn: Ter uma família bacana, ter qualidade de vida, fazer o que se ama e ajudar a melhorar a vida das pessoas. Vivo de forma muito luxuosa!

 

USE:  Sobre a arte e outros artistas no Brasil.

Glenn: Gosto de muitos artistas. Em nosso país nascem artistas bons a todo instante. O importante é que o mundo começou a perceber isso de forma mais efetiva. Vemos o trabalho dos Gêmeos, do Eduardo Cobra, do Vic Muniz e tantos outros, ocupando mais espaço no cenário artístico internacional.

 

USE:  Existe crise no mundo artístico? Você vivenciou alguma?

Glenn: Existem todos os tipos de crise no mundo artístico e o que é melhor – o artista é muito sensível. Digo que é melhor, por que crescemos e nos desenvolvemos nas crises e não na área de conforto. O jovem que deseja ser artista deve antes de mais nada adorar e amar desafios, principalmente os pessoais. Mas garanto que vale muito a pena!

 

USE: O que é sustentabilidade para você?

Glenn: De maneira geral, associamos a sustentabilidade à natureza. Realmente mantê-la é primordial. Mas isso é só a conseqüência. O problema é que olhamos para ela, como se não fossemos sua fração. A sustentabilidade mais importante está em mantermos os valores éticos e morais da humanidade. Quando dermos o devido valor às pessoas, quando nos amarmos, quando a igualdade e o respeito forem óbvios, deixaremos de poluir, de desmatar e assim por diante. Isso, porque o foco estará nas novas gerações de pessoas, que assim como nós, têm o direito de viver neste planeta e ter suas jornadas de experiências em um ambiente sadio.

 

USE: Algumas novelas brasileiras mostram suas peças. Como isso aconteceu? E o que você sentiu neste momento de massificação de suas obras?

Glenn: Antigamente eu criava alguns móveis também. Uma representante que tinha contato com a Globo me pediu umas fotos e acabei mandando por engano a foto de uma escultura. Eles viram e gostaram mais da escultura do que dos móveis. A partir daí passei a fazer esculturas e objetos de cena para eles. É incrível imaginar que milhões de pessoas estão vendo seu trabalho. Mas para mim, o mais importante é o ganho evolutivo que tenho com essa parceria. A Globo é extremamente profissional e tem todos os recursos técnicos à disposição da criação. Tenho contato com profissionais de níveis muito elevados e o meu trabalho tem de acompanhar este nível.

 

 

USE: Existem diversas ações sociais neste seu mundo de criações. Conte-nos sobre essa alegria.

Glenn: Desde 2008 tenho uma parceria com a Montana Química – fabricante de preservativos e tintas para madeiras, que num primeiro momento se interessou a dar suporte técnico ao meu trabalho. Isso foi fundamental para que eu atingisse o nível que citei anteriormente. Essa parceria evoluiu e o Projeto Criança só aconteceu porque desde o início, a  Montana Química acreditou e tem sido a patrocinadora através da Lei de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura. É assim, somando forças, chegamos mais longe. E são estas coisas que iluminam meus dias.

 

USE: Suas obras e expressões podem mudar a percepção e realidade de quem as vê? E onde as pessoas podem ter contato com o teu trabalho?

Glenn: Acredito que a mudança de uma pessoa acontece muito antes que ela mesma perceba. A partir de determinado momento a pessoa atrai e vai sendo atraída por coisas, situações, informações e mesmo por outras pessoas que vão construir essa mudança no campo real. Desta forma, acredito que o meu trabalho, se alinhe e seja um elemento no processo. Minhas  obras são encontradas em lojas de design, contudo, com visitação aberta ao público posso citar algumas galerias, como a de Luciana Steiner e DOT- São Paulo, Almacen no Rio de Janeiro, de Helena Neckel em Florianópolis, a galeria de Zilda Fraletti em Curitiba e ainda na RS Colecttion  em Miami.

 

USE: Quais os seus planos para o futuro?

Glenn: Criar cada vez mais projetos artístico-sociais envolvendo as comunidades com a ajuda de empresas sérias e responsáveis, como meus parceiros de longa data.

 

USE: Como você enxerga o mundo daqui a 50 anos?

Glenn: Muito melhor que hoje. Nosso destino é evoluir!

 

 

 

 

 

 

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